Turbulência nos Andes – Aconcágua
Estamos
em 13 de agosto de 1969, manhã linda com céu azul em toda a América
do Sul. Os aviões decolando do aeroporto do Galeão ( Rio de
Janeiro) para os mais diferentes lugares do mundo. Decolei às 9 h
com o Boeing 707 PP-VJA Intercontinental da VARIG, com 4 turbinas
Rolls Royce rumo a Santiago do Chile com escala intermediária
em Buenos Aires, Argentina. Estava previsto bom tempo sem nuvens em
todo o trecho, e não se perdeu tempo em análises minuciosas como
de costume. Os Dovs – planejadores de voo – haviam
preparado o plano de voo para Buenos Aires, prevendo um tempo
calculado em 2h05m na altitude de 33.000 pés, que são na prática
10.000 m de altitude. Na sala de operações toma-se conhecimento do
número de passageiros, quantidade de combustível para efetuar o
trecho e quanto será gasto até o pouso, mais combustível de
reserva para eventual alternativa (quando necessário).
boletim meteorológico na capital argentina não poderia ser melhor,
visibilidade ilimitada ou cavou, ventos fracos na direção de
100 graus, com velocidade de 5 knots. Pressão atmosférica de
1.18 milibares. No voo estava previsto viajar 108 passageiros e 14
tripulantes, perfazendo um total de 122 pessoas. Como passageiro
conhecido estava o cantor negro Blackout, viajando na primeira classe
até Santiago do Chile.
Decolei
do Galeão na pista 14, que tem a direção do Pão de Açúcar, num
dia lindo, sem uma nuvem no céu. Contornei o morro tomando rumo sul,
dando aos passageiros uma linda vista das praias do Leme,
Copacabana, Leblon e Pedra Dois Irmãos. Não posso deixar de relatar
a satisfação dos passageiros em terem tido esta oportunidade deste
panorama magnífico. A subida até o nível de cruzeiro foi normal,
estabilizando o voo em 33.00 pés. A temperatura externa nessa
altitude era de 51 graus centígrados abaixo de zero. Sobrevoamos
Florianópolis avisando pelo som da cabine aos passageiros que se
movimentavam para apreciar a bela costa de Santa Catarina. Ao deixar
a cabine e circular pela primeira classe, Blackout me falou
que nunca tinha visto panorama mais lindo com tanto mar azul. No
sobrevoo de Porto Alegre, repeti o speech para os passageiros,
dando detalhes sobre o voo e a vista da Capital dos Pampas. Após foi
servido serviço de bordo, como de praxe - uísque, vinhos e todo o
tipo de bebidas e sucos. A VARIG sempre primou por serviço de bordo
exemplar, o que nos dava uma posição de décima segunda companhia
do mundo em qualidade – que na década de 80 viria a ser a primeira
- segurança, desvelo pelo passageiro. A chegada e pouso em Buenos
Aires foi feita como estava previsto.
Desembarcaram
ao todo 32 passageiros, mas entraram 40 com destino a Santiago. Até
aqui tudo em ordem com novo plano de voo para o destino, com altura
prevista para 33.000 pés e 1h10min de voo. Continuava o tempo
meteorológico de “brigadeiro” - céu todo azul – assim como
estava previsto. Na decolagem para Santiago havia a bordo 116
passageiros e 14 tripulantes, o que perfazia um total de 130 pessoas.
O Boeing 707 PPVJA foi o primeiro avião quadrimotor que a VARIG
recebeu, iniciando linhas para Nova York sem escalas, foi a espinha
dorsal da era dos jatos quadrimotores, talvez o mais robusto usado
pelas diferentes companhias aéreas.
Prosseguindo
nosso voo para Santiago, sem novidades, voávamos a Mach 82*
serenos, até que, uns 10 min. ao largo do vulcão extinto Aconcágua,
observei que em torno do pico da montanha havia uma coroa de nuvens
esquisitas, que me levaram de imediato a ligar o aviso de amarrar
cintos nas cabines. Confesso que, em todos os anos de voo não tinha
visto nada igual. Era uma coroa imitando um gigantesco anel
envolvendo a montanha, ficando só o pico à mostra, aos 6.080 m de
altura em relação ao nível do mar.
Do
Rio de Janeiro até então o voo havia sido sereno sem nenhuma
turbulência, completamente tranquilo. Então deparei-me numa
situação inusitada, difícil de ser entendida. Estávamos a 10.000
metros de altitude. Ordenei imediatamente a suspensão do serviço de
comissaria e dei ordem para que todos os passageiros fossem sentados
e amarrados nos respectivos cintos de segurança. Essa atitude se
mostrou certa, pois não levou mais de 2 minutos até que o avião
começasse a vibrar. Gente desamarrada a bordo em turbulência é um
perigo ! No banheiro dos fundos do avião, havia uma pessoa que os
comissários não conseguiram tirar depois de baterem na porta
avisando que tinha que sair para sentar em sua poltrona. Estava numa
situação de tanto aperto que só exclamava “Yo no puedo”.
O comissário veio correndo para me avisar, e disse: ''Seja o que
Deus quiser, pois não tenho tempo para mais nada!''
Então,
começou uma turbulência tão violenta que o piloto automático
desligou e só restaram comandos manuais no volante e pedais para
controlar a direção e altitude do avião. O impacto do vento nesta
altitude chegava provocar um ruído tão forte como se estivéssemos
numa jaula de animais ferozes, sendo acuados pelo domador, o climb
indicava, às vezes, 3.000 pés de subida, e logo invertia 3.500
pés descendo. O velocímetro, às vezes, marcava Mach 88,
parecendo que o avião ia estolar – perder a sustentação.
Realmente em 25 anos de aviação nunca tinha passado por situação
parecida. A duras penas conseguia manter o avião sob controle. O que
também mais me preocupava é que nessas extremas circunstâncias
poderia acontecer uma quebra de asa ou de cauda por fadiga de
material, pois o PP-VJA, nessa época estava com 35.000 horas de voo
- era o Boeing mais voado do mundo.
A
seguir, disse ao meu primeiro oficial, que não tinha condições de
prosseguir o voo e que faria 180 graus para voltar rumo inverso ao
que estávamos voando, já que o que estava pela frente poderia ainda
ser pior. Esse foram os 6 minutos mais críticos de voo que jamais
havia presenciado. Num momento desses tudo passa pela cabeça.
Lembrei do Boeing 707 da antiga companhia BOAC que um ano antes,
estava sobrevoando o Monte Fuji, em Tóquio e uma turbulência
fora do comum quebrou a cauda do avião resultando na morte de 180
pessoas. Quando saímos da área do jet stream, e o voo voltou
para a calmaria, jamais poderia imaginar como estava o nosso avião.
As portas dos fogões estavam abertas e tudo no chão da galley
da cozinha, eram pratos, louças, copos, garrafas – nada de quebrar
ficou inteiro.
Ainda
bem que os passageiros e tripulantes estavam em suas poltronas,
amarrados. Fiquei apreensivo com o nosso passageiro “Yo no puedo”
que havia ficado no WC traseira - ele se salvou devido ao local ser
diminuto e ter se agarrado com unhas e dentes na parede. Mesmo assim
bateu com a cabeça no teto, fincou o pé na abertura da descarga do
WC, o que causou quebra do calcanhar direito. Gritos dos passageiros
eram ouvidos na cabine, mas os comissários de bordo se mantiveram
firmes. O cantor negro Blackout saiu do avião cinza, tamanho
foi o susto! Inacreditável, simplesmente. Quando acalmou a
turbulência passados 6 minutos, tentamos ligar o piloto automático
novamente, mas meus braços estavam duros de cãibra, tamanha
concentração e esforço que tive que fazer.
Fiz
depois desvio de rota para me aproximar e pousar em Santiago do
Chile, finalizando o voo. Na saída do desembarque do avião, muitos
passageiros foram me abraçar na cabine do comando, me felicitando
por todos estarem salvos e em terra firme.
A
seguir, requisitei 2 engenheiros de manutenção da Lufthansa
que estavam se serviço no aeroporto para examinarem – levaram 3
horas - todos os pontos críticos do avião e de acordo com a
recomendação da fábrica Boeing. No voo de regresso para o Rio de
Janeiro, depois do pouso o avião ficou 15 dias para reparo de
manutenção. Na fita da caixa preta do avião ficaram registrados os
parâmetros que chegaram a bater no máximo que o avião pode
aguentar.
Mais
tarde, tive uma entrevista com nosso então presidente da VARIG, sr.
Erik de Carvalho, em seu gabinete no Rio de Janeiro, que quis saber
dos detalhes do acontecido, ficando satisfeito com o desfecho do
caso. Mas, disse-lhe que não aceitaria um cheque de US$ 100.000 para
passar pela mesma situação.
*Mach
2 - é duas vezes a velocidade do som. A velocidade do som no ar é
de 340 m/s (1224 km/h).
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